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09/05/2010Segurança de aluguel - Dayse de Vasconcelos Mayer
09/05/2010Publicado no Jornal do Commercio - 09.05.2010
dayse@hotlink.com.br
Recordo o começo de um verso de Clarice: "Dá-me a tua mão desconhecida..." Eis um gesto perenal. Tão constante que dele nem nos apercebemos. Algumas vezes o aprisionamento entre as mãos traduz o desejo de segurança. Segurança como um dos valores fundamentais do direito. Está jungida ao valor justiça. Quando a primeira prevalece, os homens passam a viver numa sociedade sem liberdade, quando a segunda triunfa, passamos a sofrer uma realidade caótica.
O Estado é o responsável pela justiça e pela segurança. É dele o privilégio dos "ius puniendi", exceto naquelas circunstâncias que a lei excepcionalmente prevê. Mas nem sempre vale o que está escrito. Em matéria de segurança, por exemplo, os exércitos, a polícia... vão se revelando, hoje, cada vez mais inaptos, ineficientes e insuficientes. Encontrou-se por isso um novo sistema: a segurança de aluguel, também conhecida pelos nomes de segurança privada, "racionalização da ferramenta militar", soldados terceirizados, sociedades militares privadas, etc. Tal acontece externa e internamente.
A ideia não é recente. No âmbito internacional, a CIA faz uso deste procedimento desde 1963/64. A escolha recaiu sobre soldados da Xe Services, sucessora da Blackwater, com a finalidade, por exemplo, de eliminar líderes da Al Queda. Aos poucos a ação vai se deslocando para o Afeganistão e outras bandas do planeta.
Tais associações são integradas pelos mesmos mercenários que vemos nos filmes norte-americanos. Com eles os países fogem aos regulamentos militares, aos acordos internacionais e à responsabilidade por operações clandestinas. Estaríamos perante um fenômeno que a doutrina já denominou de "síndrome do trabalho sujo".
Significa que o Estado confere aos particulares permissão para realizar tarefas reprováveis ou mesmo criminosas. Grande parte desses exércitos é formada por ex-oficiais, num processo de diluição das fronteiras entre o público e o privado. O sistema garante quando muito a impunidade dos protagonistas principais.
Historicamente, sabe-se que o monopólio da força pelo Estado está associado, nos tempos modernos, às monarquias absolutas e às concepções do despotismo esclarecido. A erradicação dos exércitos privados - traço do feudalismo - foi um dos objetivos da centralização do poder.
Na esfera interna, o fenômeno já se manifesta há algum tempo. As empresas de segurança estão crescendo de forma atemorizante, sinalizando que o aparelho estatal se revela incapaz de garantir a defesa dos cidadãos.
Todavia, embora o Estado detenha o monopólio da força, nada impediria, em tese, que a função de segurança fosse confiada, excepcionalmente, aos particulares. Mas teria sempre o caráter subsidiário. Seria o caso dos bancos, das indústrias, das farmácias, dos bares, dos hotéis,... Nada disso vem ocorrendo. Já existem sindicatos de empresas de segurança privada, fóruns empresariais de segurança privada, cursos de graduação e pós-graduação em segurança privada, etc. Os professores são ex-militares ou delegados de polícia. Alguns exercem função cumulativa. A atividade privada é desempenhada nos horários e dias disponíveis. Cria-se um meio ele próprio criminógeno, pela falta de uma ética e disciplina profissionais.
Estive em Fortaleza no final da semana passada. O hotel mantinha uma grande cabana na praia para almoço e jantar mais próximo ao mar. Identifiquei pelo menos três seguranças. Todos em traje civil, bem vestidos, corpulentos e suficientemente armados.
Falar-se-ia neste caso da existência de um novo feudalismo? E que entorses traria já ao futuro próximo? Vale a pena refletir, sem descuidar o complemento da poesia de Clarice ..."a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais".