REFLEXÕES BIOÉTICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS BIOTECNOLÓGICOS E BIOMÉDICOS NO CONTRATO DE TRABALHO

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24/10/2013

REFLEXÕES BIOÉTICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS BIOTECNOLÓGICOS E BIOMÉDICOS NO CONTRATO DE TRABALHO

24/10/2013
REFLEXÕES BIOÉTICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS BIOTECNOLÓGICOS E BIOMÉDICOS NO CONTRATO DE TRABALHO
Liliane Gruhn: Graduada em Direito pela UFPR, Pós-Graduada em Direito Processual Civil e Penal pela Unoesc, Mestre em Direito Processual Civil e Cidadania pela Unipar - Universidade Paranaense, Professora do Curso de Direito da Faculdade Educacional de Dois Vizinhos - Unisep, Advogada.   INTRODUÇÃO As transformações do mundo contemporâneo provocadas pelo desenvolvimento biotecnológico e biomédico alcançaram o Direito do Trabalho, afetando a tradicional relação empregatícia e criando novos direitos e deveres aos sujeitos do contrato de trabalho. A ausência de normas jurídicas específicas para estes temas, contudo, não é óbice à adoção de novas práticas no meio ambiente do trabalho e na relação entre empregado e empregador. O conteúdo axiológico da Constituição Federal e a retomada da ética pelo Direito permitem a busca do equilíbrio e da ponderação acerca das novas questões. Com o presente estudo, busca-se aproximar a Bioética do Direito do Trabalho. Para tanto, inicialmente, contextualiza-se o Direito do Trabalho com os direitos fundamentais e de personalidade, originários da dignidade da pessoa humana, verdadeiro paradigma a permear a conduta humana. Ao tempo em que se abordam os direitos fundamentais do trabalhador, extraem-se os deveres jurídicos dos sujeitos do contrato de trabalho, dando especial atenção ao direito à vida, à saúde, à integridade físico-psíquica e à proteção da intimidade e vida privada do empregado. O avanço biotecnológico e biomédico, com a adoção de novos métodos nas diversas fases do contrato de trabalho, ou seja, no processo seletivo, durante a execução contratual, no término e na pós-contratualidade, embora autorizados, genericamente, pelo poder de direção do empregador, demandam uma análise criteriosa e cautelosa, diante dos direitos fundamentais do trabalhador. O presente trabalho, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e da bioética, faz reflexões sobre o meio ambiente do trabalho saudável ao trabalhador e sobre as restrições ao poder de direção do empregador. 1 BIOÉTICA E SUA IMPORTÂNCIA AO DIREITO DO TRABALHO O Direito do Trabalho, tradicionalmente ocupado das lides intersubjetivas entre empregado e empregador, e da busca do equilíbrio entre o capital e o trabalho, vê-se diante de novos desafios que extrapolam as relações individuais e a mera aplicação de regras jurídicas. A conquista dos direitos sociais dos trabalhadores, cujo rol mínimo está garantido constitucionalmente, em especial no art. 7º, sem dúvida, determinou transformação nas relações de trabalho, seja como processo educativo (gradativamente as empresas ajustaram [e ainda ajustam] a relação empregatícia às exigências legais), seja como consequência da repercussão econômica advinda do descumprimento das obrigações trabalhistas. Surge o Direito do Trabalho com a Revolução Industrial, que alterou significativamente o setor produtivo e as relações sociais. A substituição do trabalho do homem pela máquina repercutiu na utilização generalizada da mão de obra das mulheres e dos menores, as chamadas “meias-forças dóceis”, que se submetiam a precárias condições de trabalho com baixo poder reivindicatório. A doutrina marxista, que se contrapunha à noção de trabalho como mercadoria, cujo preço era regulado pela concorrência, fez despertar uma consciência coletiva e, por consequência, os movimentos reivindicatórios violentos. Tal ambiente provocou manifestações da doutrina social da Igreja. O cenário do liberalismo econômico, então vigente, foi objeto de insurgência e os movimentos a ele contrários buscavam intervenção do Estado, para assegurar ordenamento jurídico mais equilibrado. O surgimento das massas e de uma consciência coletiva, o sentimento de solidariedade e o cunho humanitário determinaram a intervenção do Estado e o surgimento do Direito do Trabalho 1. A mudança da sociedade agrícola para a sociedade industrial determinou significativas mudanças no setor produtivo e nas relações de trabalho, provocando o surgimento da típica relação empregatícia, caracterizada essencialmente pela subordinação. No século XXI, entretanto, ocorre, como apontado pela doutrina, a terceira revolução, denominada de “revolução da informação”, o que, novamente, altera significativamente as relações sociais, econômicas e jurídicas. A informação e o conhecimento passam às principais fontes de riqueza, em substituição ao capital 2. Aponta, ainda, Siqueira Jr.: A informação é o ponto nevrálgico da sociedade contemporânea, sendo o paradigma das transformações vivenciadas, superando modelos diferentes baseados em energia, vapor e eletricidade, terra, trabalho, e capital. A informação é o principal produtor de riqueza. Vivemos numa sociedade em que a informação, o conhecimento e a comunicação se tornaram fatores centrais tanto na vida pública quanto privada. Esse objeto é estudado no direito público e privado. No aspecto público fala-se em cidadania digital e acesso a informação. Na esfera privada a proteção da intimidade ganha novos contornos e preocupações. 3 No mundo contemporâneo, as relações de trabalho estão permeadas de novos direitos e de novos debates, cuja tutela não decorre, necessariamente, da subsunção do fato às regras jurídicas, mas da aplicação dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, eleitos no art. 1º, incisos III e IV, da Constituição Federal, como fundamentos do Estado Democrático de Direito, e da compatibilização entre eles e sua aplicação no caso concreto. Aliado a isso, o Direito do Trabalho não pode se distanciar dos objetivos da República Federativa do Brasil, de construir uma sociedade livre, justa e solidária, comprometida em erradicar a pobreza e a marginalização, e de redução das desigualdades sociais e regionais, comprometido em promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I, III e IV, da Constituição Federal). Passa-se, contemporaneamente, e em decorrência de inovações biomédicas e biotecnológicas, que alcançam a relação de emprego, a centrar as atenções na proteção do trabalhador, com vistas a afastar condutas discriminatórias no processo seletivo (fase pré-contratual), na manutenção do emprego (durante a vigência do contrato de trabalho) e no rompimento contratual, salvaguardando as minorias e/ou vulneráveis. A sociedade da informação, como apontado por Paulo Hamilton Siqueira Jr., altera paradigmas no estudo do Direito, provocando novas reflexões para o operador do direito: A sociedade da informação deve necessariamente enfrentar questões éticas, pois a técnica não pode permanecer autônoma, sem valor, como simples fração matemática. A sociedade da informação deve enfrentar as questões relativas aos alimentos transgênicos, manipulação genética e outras questões que surgem do avanço científico e tecnológico. [...] A sociedade da informação provoca profundas mudanças nas relações sociais. Fala-se em amizade virtual, adultério pela rede, em substituição a um relacionamento real, efetivo. Essa nova realidade requer que o operador do direito seja capaz de enfrentar os comportamentos desejáveis socialmente, sobretudo na perspectiva de uma conduta adequada, distante da tradicional visão do direito como ameaça, pena e coação em geral. Sem descurar de sua formação técnica, o jurista precisa abrir seus horizontes para um contexto científico e social ampliado, no qual deverá agir. É fundamental, porém, que não perca de vista o problema da exclusão, tornado mais e mais agudo pela complexidade social. 4 Retoma-se a importância da ética nas relações intersubjetivas e para os operadores do Direito diante das inovações tecnológicas e científicas, como apontado por Antônio Moser: [...] A ética, até há pouco desprestigiada porque mergulhada em crise profunda desde o surgimento da filosofia analítica, volta agora, em grande estilo, ao centro dos debates. Efetivamente, na vertente mais pragmática da bioética, ela se impõe não só no âmbito científico, onde assumiu a fisionomia de uma “ciência do diálogo”, mas ganhou força em todas as igrejas cristãs e nas religiões mais comprometidas com a marcha da história. Ora invocada como uma espécie de tábua de salvação diante de terríveis ameaças, ora apontada como representante do atraso e do reacionarismo, a ética readquiriu inusitado vigor. [...] 5 É nesse ambiente que a bioética se torna importante para o Direito do Trabalho, vez que a interdisciplinaridade que lhe é inerente possibilita uma análise ponderada e equilibrada dos interesses em conflito. Tereza Rodrigues Vieira aponta os objetivos da bioética e sua importância para o Direito: O ensino da bioética no curso de Direito objetiva: refletir sobre as práticas pluridisciplinares provocadas pelos avanços científicos, combinando conhecimentos biológicos e valores humanos, considerando a contribuição de cada área para o enriquecimento e amadurecimento da decisão em cada situação; incutir no futuro profissional a necessidade de aprimoramento do conhecimento técnico, científico e cultural; assegurar o princípio da primazia da pessoa, aliando-se às exigências legítimas do progresso do conhecimento científico e da proteção da saúde; despertar e desenvolver nos acadêmicos o questionamento sistemático dos assuntos estudados; desenvolver o potencial de pesquisador, demonstrando os principais caminhos da investigação nos campos da bioética e do Direito; atentar para a responsabilidade acerca do presente e do futuro da biociência, discutindo normas que protejam o Direito à vida digna, saúde, privacidade, etc; demonstrar a importância de saber ouvir e lidar com diferentes opiniões, reconhecendo o pluralismo; familiarizar o aluno com a abordagem holística dos temas. 6 Na atualidade, são frequentes, no âmbito do Direito do Trabalho, debates acerca do monitoramento audiovisual nos locais de trabalho, necessidade e finalidade do mapeamento genético em processos seletivos ou durante a vigência do contrato de trabalho, realização de exame para diagnóstico de doenças como AIDS, câncer, dependências químicas (tabagismo, alcoolismo e outras drogas), exames e testes psicológicos para apurar o perfil psicológico do examinando. Não há regras jurídicas disciplinando especificamente cada um desses temas, a exemplo da garantia de emprego do empregado com AIDS ou câncer, critérios para a utilização do monitoramento eletrônico no local de trabalho, entre outros. Algumas condutas do empregador, no exercício do seu poder diretivo e com a utilização de inovações biotecnológicas, podem provocar discriminação e exclusão, afrontar a intimidade e a privacidade e, até mesmo, causar danos à saúde física ou psíquica do empregado, ou ainda provocar hostilização no meio ambiente do trabalho, afetando a saúde e segurança dos trabalhadores. A intervenção do Estado, com a criação de leis para a resolução de conflitos em todas as situações emblemáticas, a princípio, não parece a melhor solução. Além de exigir incomensurável volume de leis, a prática poderia afastar a necessária análise holística, ponderada e equilibrada de cada caso concreto. O termo bioética, na concepção de Fritz Jahr, “seria uma disciplina acadêmica, um princípio e uma virtude, que, como tal, imporia obrigações morais em relação a todos os seres vivos” 7. Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves conceituam bioética como “a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da biologia, avaliando suas implicações na sociedade e relações entre os homens e entre esses e outros seres vivos” 8. Historicamente, o conceito de bioética sofreu apropriações. Originariamente, o termo foi utilizado por Van Rensselder Potter, em sentido ecológico, como a ciência da sobrevivência, ou seja, a bioética se valeria das ciências biológicas para contribuir para a melhoria da qualidade de vida do ser humano, buscando equilibrar as relações dos seres humanos com o ecossistema. A partir de 1971, com André Hellegers e depois com Jean Pierre Marc-Vergnes, adotou-se o termo para designar “a ética das ciências da vida”. E em 1995, com a segunda edição da Enclopedia of bioethics, foi definida como o “estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar” 9. Maria Helena Diniz assim conceitua a bioética: [...] um conjunto de reflexões filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular. Para tanto abarcaria pesquisas multidisciplinares, envolvendo-se na área antropológica, filosófica, teológica, sociológica, genética, médica, biológica, psicológica, ecológica, jurídica, política, etc., para solucionar problemas individuais e coletivos derivados da biologia molecular, da embriologia, da engenharia genética, da medicina, da biotecnologia, etc., decidindo sobre a vida, a morte, a saúde, a identidade ou a integridade física e psíquica, procurando analisar eticamente aqueles problemas, para que a biossegurança e o direito possam estabelecer limites à biotecnociência, impedir quaisquer abusos e proteger os direitos fundamentais das pessoas e das futuras gerações. 10 Classifica-se a bioética em bioética das situações persistentes e das situações emergentes. A primeira aborda temas recorrentes ao longo da história, como “aborto, eutanásia, racismo, exclusão social e discriminação”; a segunda abrange os conflitos que têm origem entre as contradições do progresso biomédico e os limites da cidadania e dos direitos humanos (por exemplo, fecundação assistida, doação e transplante órgãos e tecido) 11. A bioética compreende uma multiplicidade de perspectivas na análise de solução de determinado conflito, e não se confunde com a expressão biodireito, este entendido como um ramo do Direito e aquela como ramo da ética e da filosofia. Distinguem-se as expressões pelo procedimento ou técnica utilizada na resolução do conflito, pois a bioética se insere na zetética jurídica enquanto o biodireito faz parte da dogmática jurídica: [...] Tratam-se, na verdade, de duas ordens normativas diferentes - direito e moral. O direito como ordem pragmática de solução de conflitos, pode ser investigado por uma perspectiva dogmática. Já a moral atua no universo jurídico como ordem normativa auxiliar, fornece subsídios para formulação e aplicação do Direito, sem, no entanto, com ele se confundir. A bioética, dessa forma, tem relevância para o Direito, pois faz parte da zetética jurídica. [....] O biodireito possui um procedimento dogmático. Há normas de Direito positivo que fornecem uma estrutura de soluções intra-sistêmicas. Já a ética biológica analisa a ciência biológica como ela deve ser. É ramo da filosofia, pois faz questionamentos abertos, infinitos, ainda que partindo de premissas provisórias e precárias. Ela responde de modo filosófico. Enquanto a dogmática jurídica não ultrapassa o Direito vigente e o aborda intra-sistematicamente, a Filosofia, por meio de uma abordagem transistemática, se interessa pela situação vigente apenas em relação a seu valor. 12 Explica Tereza Rodrigues Vieira que a “bioética examina as possibilidades, as respostas morais para os questionamentos, cabendo ao Direito, quando for o caso, a sua tradução em normas jurídicas, por serem estas gerais e de obrigatório cumprimento. [...]” 13. 2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: PRINCÍPIO PARADIGMÁTICO E NUCLEAR DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE A dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme expresso no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Trata-se de incorporação de teor axiológico no Texto Constitucional, atrelado à concretização dos direitos fundamentais, princípio que estabelece limites à ação do Estado e protege a liberdade humana contra abusos de poder 14. A eleição da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado de Direito simboliza a quebra do positivismo jurídico e inaugura o chamado pós-positivismo ou neoconstitucionalismo. Representa o retorno aos valores e à humanização do Direito. É considerado valor e princípio informador do respeito ao próximo. Extraído do pensamento kantiano para superação do utilitarismo: “a) uma pessoa deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse transformar-se em uma lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio para realização de metas coletivas ou de outras metas individuais. As coisas têm preço; as pessoas têm dignidade. Do ponto de vista moral, ser é muito mais do que ter” 15. A importância e profundidade da aplicação da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado de Direito outorga-lhe o conteúdo substancial de todo o sistema normativo e inaugura um novo paradigma de conduta e de operacionalização do Direito. Sensível à importância axiológica e ao descortinar de novos tempos, Luís Roberto Barroso pondera: O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integridade a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. 16 Constitui-se em núcleo dos direitos fundamentais e, sob a ótica privatista, dele se extraem os direitos de personalidade, elencados nos arts. 11 a 21 do Código Civil, classificados em três grupos: a) integridade física; b) integridade intelectual; e c) integridade moral. Na lição de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, consideram-se direitos de personalidade aqueles essenciais à pessoa humana, com a finalidade de “proteger, exercer e resguardar determinados valores imprescindíveis, tais como integridade física, intelectual e moral”, cujos grupos são compostos de direitos, como: Dentro da integridade física encontram-se: i) direito à vida; ii) direito aos alimentos; iii) direito ao próprio corpo e às partes separadas do corpo (vivo); iv) direito ao corpo alheio e às suas partes separadas (falecido). Quanto à integridade intelectual temos: i) direito à liberdade de pensamento; ii) direitos autorais de ciências, artes, literatura. No campo da integridade moral elencamos: i) direito à honra; ii) direito à imagem; iii) direito à identidade pessoal, familiar e social; iv) direito à liberdade civil, política e religiosa; v) direito ao recato; vi) direito ao sigilo pessoal, doméstico e profissional. 17 O princípio da dignidade da pessoa humana, pelas razões expostas anteriormente, aplica-se à bioética como fundamento valorativo, ético e normativo, limitador de condutas decorrentes das inovações e descobertas biotecnológicas. Enfatiza Maria Helena Diniz que o “respeito à vida humana digna, paradigma bioético, deve estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades humanas” 18. 3 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E OS DIREITOS SOCIAIS À SAÚDE E AO TRABALHO A dignidade da pessoa humana é núcleo dos direitos fundamentais, classificados pelo Texto Constitucional, de acordo com a sistemática dos arts. 5º a 17, em direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade e direitos políticos. Interessam ao presente estudo especialmente o direito fundamental à vida e os direitos sociais à saúde e ao trabalho, examinados a partir do núcleo formador de cada um deles, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Com isso, não se protege unicamente a vida, a saúde e o trabalho, mas sim e principalmente a vida digna (nela incluída a saúde físico-psíquica) e o trabalho digno. Contudo, retomando a análise feita pelo Professor Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo, vemos que a Constituição, enquanto unidade orgânica, conduz ao preenchimento do conceito de dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, com os direitos sociais elencados em seu art. 6º, que são capazes de promover uma “existência digna”. [...] Embutido no conceito de direito à vida, à sua inviolabilidade, está o direito da pessoa humana à sua integridade física e psíquica ou moral. 19 Os direitos sociais, na concepção de José Afonso da Silva, traduzem-se, na dimensão dos direitos fundamentais do homem, em prestações positivas do Estado. Já os direitos individuais possuem, preponderantemente, um conteúdo de não fazer, segundo Recaséns Siches 20. De acordo com a Constituição Federal, os direitos sociais são direitos fundamentais que, para sua concretização, impõem ao Estado e ao particular a observância de condutas atinentes à preservação desses direitos: São, portanto, na dimensão objetiva, concernente à sua operatividade prática, exigíveis as prestações impostas constitucionalmente tanto ao Poder Público como ao particular, no exercício da atividade econômica, enquanto empregador ou empreendedor, propícias à manutenção de condições materiais adequadas ao exercício dos direitos sociais fundamentais, mormente no que tange à preservação da saúde do trabalhador, em seu ambiente de trabalho, facultando-se-lhe exigir as prestações constitutivas de seus direitos sociais fundamentais. Nesse novo contexto, a dignidade da pessoa humana passou também a substanciar a resolução dos conflitos entre empregado e empregador, nas hipóteses em que as inovações biotecnológicas possam pôr em risco os direitos sociais e de personalidade do trabalhador. As reflexões bioéticas, no âmbito do Direito do Trabalho, têm lugar no exame das questões que possam afrontar a inviolabilidade da vida, a integridade física e psíquica do trabalhador, a saúde e o acesso ao trabalho ou a manutenção do emprego. Ao empregador, por consequência, impõem-se deveres consubstanciados na proteção e promoção dos direitos sociais e de personalidade do empregado, especialmente relacionados com o meio ambiente de trabalho saudável e condições dignas de trabalho. 4 O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E OS DEVERES JURÍDICOS DECORRENTES DO CONTRATO DE TRABALHO O avanço tecnológico e o descortinar da revolução da informação conduziu à necessidade, também no âmbito das relações de trabalho, de se empreender um desenvolvimento sustentável, assim considerado aquele que preserva o meio ambiente de trabalho saudável. Ronaldo Lima dos Santos faz alusão ao conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) sobre o meio ambiente do trabalho, que estabelece que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de seu trabalho, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Também a Declaração de Estocolmo (1972) previu proteção ao meio ambiente do trabalho: O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada em um ambiente que esteja em condições de permitir uma vida digna e de bem-estar: tem ele a grave responsabilidade de proteger e melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, a política que promover ou perpetuar a discriminação ou a segregação racial, a opressão colonial ou de qualquer espécie, ou a dominação estrangeira, continuam condenadas e deverão ser eliminadas. 21 A Constituição Federal pátria consagra o meio ambiente, inclusive o meio ambiente do trabalho, como um direito social, estreitamente vinculado ao direito à saúde (art. 200, inciso VIII, art. 225, e em vários incisos do art. 7º): Essa proteção constitucional do meio ambiente, além de ampla, demonstra que ele configura um direito fundamental de toda a sociedade, com proteção erga omnes e, sob esse aspecto, emerge como um dos princípios da ordem econômica a ser observado pela livre iniciativa e, em qualquer atividade econômica (art. 170, inciso VI, da CF/1988), o que inclui as relações de trabalho. [...] O meio ambiente do trabalho, hodiernamente, consiste num direito fundamental do ser humano, por isso que, constitucional e internacionalmente, protegido. [...]. 22 O meio ambiente de trabalho considerado saudável é aquele local no qual o trabalhador presta os serviços isento de qualquer insalubridade, penosidade ou periculosidade, sob o aspecto físico da edificação, maquinários, adoção de condutas que evitam a fadiga do trabalhador, adequação ergonômica, mas também sob o aspecto psíquico, e aqui se inclui um ambiente de trabalho livre de condutas discriminatórias. Como condutas discriminatórias entende-se alguns métodos utilizados em processo seletivo, como a formulação de perguntas sobre a vida privada e intimidade do trabalhador, relativa a questões políticas, orientação sexual, estado de saúde, estado civil, gravidez, número de filhos; assim como exigência de submissão a exames de gravidez, exames toxicológicos, testes psicológicos, contagem genética. Tais métodos, se indevidamente aplicados, podem promover discriminação, restringir o acesso ao trabalho, impedir a ascensão profissional, impossibilitar a manutenção do emprego ou afetar a “integridade psicossomática” do trabalhador 23. O meio ambiente do trabalho é definido por Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior como “o espaço meio de desenvolvimento da atividade laboral, como o local hígido, sem periculosidade, com harmonia para o desenvolvimento da produção e respeito à dignidade da pessoa humana” 24. O dever jurídico do empregador de assegurar um meio ambiente do trabalho hígido, equilibrado e harmônico decorre do direito fundamental à vida, este estreitamente vinculado ao direito à saúde do trabalhador. A proteção à saúde, além dos aspectos físicos do meio ambiente, é efetivada com o respeito à integridade mental do trabalhador. A Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho estabelece o conceito de saúde no trabalho, citado por Laura Martins Maia de Andrade: “A saúde, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene do trabalho” 25. O direito à vida digna e à saúde do trabalhador, à integridade física e psíquica, à imagem, à privacidade, entre outros, conduz ao dever do empregador de, na relação jurídica que mantiver com o empregado, proteger e preservar esses direitos fundamentais. O direito à integridade psíquica é um dos direitos da personalidade, impondo, assim, a todos o dever de respeitar a estrutura psíquica de outrem, seja por ações diretas ou indiretas, seja em tratamentos psicológicos, seja, ainda, em atos repressivos. É preciso resguardar os componentes identificadores da estrutura interna da pessoa, suas convicções, idéias, modo de pensar etc., para que possa haver tutela integral à sua personalidade. [...] Ninguém deve prejudicar a sanidade mental de outrem, sob pena de ser responsabilizado penal e civilmente. 26 Na relação de emprego, a exemplo do que ocorre nas relações jurídicas em geral, o direito subjetivo de um faz nascer o dever jurídico de outro. José Affonso Dallegrave Neto define dever jurídico a partir do direito subjetivo, classificando-o em direito subjetivo em sentido estrito e direito potestativo: [...] na relação obrigacional o reverso do direito subjetivo do credor tanto pode seu um dever jurídico como um estado de sujeição. Isso se explica porque os chamados direitos subjetivos subdividem-se em direito subjetivo propriamente dito e direito potestativo. Se, por exemplo, o direito do credor for o de exigir o trabalho pactuado de outrem, estar-se-á diante de um direito subjetivo propriamente dito do credor (empregador) e de um correspondente dever jurídico do devedor (empregado). Ao revés, se o direito do credor for de despedir sem justa causa, o empregado estará, então diante de um direito potestativo do empregador, desempenhando o empregado um mero papel de sujeição à vontade do credor. 27 Em síntese, a todo direito subjetivo em sentido estrito corresponde um dever jurídico da contraparte. Sob a perspectiva da boa-fé no contrato de trabalho, Eduardo Milléo Baracat aponta a criação de deveres jurídicos nas fases pré-contratual, na execução, na rescisão do contrato de trabalho e na pós-contratualidade. Na fase pré-contratual, refere-se aos deveres de proteção, informação, lealdade, sigilo e atuação consequente. Durante a execução do contrato, os deveres de cuidado, previdência e segurança, de respeitar as condutas extralaborais do empregado, de respeitar a imagem do trabalhador, de aviso e esclarecimento, de informação, de colaboração e cooperação, de proteção e cuidado com o patrimônio da outra parte, de omissão e segredo. Na rescisão contratual, a observância dos princípios da proteção do emprego, da busca do pleno emprego e da função social da empresa. E, na fase pós-contratual, os deveres de proteção e lealdade 28. Mesmo na fase pré-contratual, ou seja, durante as tratativas entre empregado e empregador para a celebração do contrato de trabalho, surgem deveres para as partes, especialmente relacionados com os métodos utilizados no processo seletivo. O dever de proteção consiste na obrigação das partes, nas tratativas preliminares, de não causar danos diretos ou indiretos à pessoa ou bens. O dever de informação diz respeito à necessidade de serem prestados os esclarecimentos pertinentes à conclusão do contrato. Entretanto, as informações buscadas pelo empregador no processo seletivo devem ser “contextualizadas em face da função e da capacidade profissional do trabalhador”, não como meio para conhecer, por exemplo, opções políticas, sexuais, religiosas do empregado, e utilizá-las para obstar o acesso ao emprego. O dever de lealdade não permite que as partes assumam comportamento incorreto ou desonesto. Já o dever de sigilo impõe a obrigação da contraparte de não divulgar a terceiros informações que obteve em razão das tratativas preliminares. A doutrina recomenda, inclusive, que os dados armazenados em fichários ou computadores sejam destruídos na hipótese de não se concretizar o ajuste contratual. A atuação consequente diz respeito às situações de “ruptura injustificada das negociações contratuais”, isto é, no rompimento das tratativas preliminares quando já criada na contraparte a confiança quanto à celebração do contrato 29. Durante a execução do contrato, outros deveres são descortinados, citando-se, a título de exemplo, o dever de cuidado, previdência e segurança, de especial importância para o objeto deste estudo, diante da vinculação à integridade física e psíquica do trabalhador: Incumbe ao empregador, tendo em vista seu dever de cuidado, previdência e segurança do empregado, cumprir e fazer cumprir as normas de segurança do empregado, cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; instruir os empregados, por ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; como também facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente. O dever de cuidado, no entanto, não se limita apenas à integridade física, estendendo-se também à integridade moral, verificada sobretudo na proibição da utilização pelo empregador da prova genética como objetivo de discriminação do empregado, como também proibição de revista e cuidado com a liberdade sexual do empregado. 30 Quanto aos devedores a serem observados no curso do contrato, o autor relaciona: a) o de respeitar as condutas extralaborais do empregado, ou seja, não cabe ao empregador qualquer ingerência na vida privada do empregado, salvo para salvaguardar a “eficácia e virtualidade do trabalho”; b) o de respeitar a imagem do trabalhador, o que abrange a análise do controle sobre a vestimenta e aspecto exterior do empregado, a utilização da imagem do empregado para promover a atividade econômica do empregador e as condutas tendentes a denegrir a imagem do empregado; c) o de aviso e esclarecimento que, em verdade, refere-se à comunicação que deve existir entre empregado e empregador (comunicar previamente as férias, por exemplo); d) de informação, consistente no “dever de verdade” recíproco que deve estar presente na relação empregatícia; e) de colaboração e cooperação, relativo ao dever de disponibilizar ao empregado equipamentos e outras condições necessárias para a prestação laboral, de não exigir do empregado serviços superiores às suas forças, ilícitos ou que afrontem os costumes, vedação da prática de atos lesivos à honra e boa fama, entre outros; f) de proteção e cuidado com o patrimônio da outra parte, inclusive quanto à manutenção e zelo do local de trabalho e dos equipamentos; g) de omissão e segredo, como decorrência dos deveres de cooperação e colaboração, que alcançam manutenção do sigilo sobre atos e fatos conhecidos em razão do contrato de trabalho 31. A rescisão contratual é considerada como direito potestativo do empregador, embora combatido por parte da doutrina em razão dos princípios da proteção do emprego e da busca do pleno emprego 32. Mesmo extinto o vínculo entre empregado e empregador, remanescem deveres recíprocos, como o da proteção e da lealdade. O primeiro determina a abstenção de provocar danos mutuamente (por exemplo, utilização, sem autorização, de fotografia do empregado com cliente para promover a atividade econômica). O segundo exige abstenção da prática de concorrência e a manutenção do dever de sigilo das informações obtidas em razão do contrato de trabalho 33. 5 O PODER DE DIREÇÃO DO EMPREGADOR E AS LIMITAÇÕES AO SEU EXERCÍCIO Não obstante os debates doutrinários acerca da natureza jurídica da relação entre empregado e empregador, predomina o entendimento, no sistema pátrio, de que se trata de contrato, que atribui a um dos sujeitos dessa relação jurídica - o empregador - a titularidade do denominado poder de direção, como se extrai do art. 2º da CLT. Mais consistente é a teoria que fundamenta a existência dos poderes do empregador no contrato de trabalho. Esses poderes são conseqüência imediata da celebração do ajuste entre empregado e empregador, o qual coloca sob a responsabilidade deste último a organização e a disciplina do trabalho realizado na empresa, quer vista sob a forma de empresa capitalista, quer sob o prisma da empresa socializada. 34 Controverte-se, também, a natureza jurídica do poder de direção, se direito potestativo (marcado pela unilateralidade na direção da relação jurídica e aceitação ou tolerância pela contraparte) ou direito-função, assim considerado: [...] um direito com fins altruístas, que deve ser cumprido segundo sua finalidade, de maneira mais útil possível pela pessoa habilitada. A função não elimina o direito, simplesmente o coloca a seu serviço, como ocorre com o direito de propriedade. Essa teoria está em consonância com a função social do contrato, reconhecida pelo art. 421 do Código Civil de 2002, aplicável subsidiariamente ao Direito do Trabalho, por força do art. 8º da CLT. Ora, a função social mitiga o princípio da autonomia contratual. [...] 35 A concepção do poder diretivo como direito-função, portanto, impõe limites ao seu exercício. Os limites externos são impostos pela Constituição Federal ou outras leis e os limites internos são ditados pela necessária observância da boa-fé e de seu exercício de forma regular 36. O empregador, no exercício da função diretiva, organiza, fiscaliza, aplica medidas disciplinares. Contudo, o exercício do poder de direção desmedido e sem observância da boa-fé pode caracterizar abuso de direito. A boa-fé a que se refere a doutrina é a objetiva, ou seja, aquela “tida como regra de conduta estribada na lealdade, na probidade e, principalmente, na consideração para com os interesses do outro (alter), visualizando-o como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado”. A boa-fé objetiva é paradigma das relações contratuais e ostenta três funções principais: a) limitadora do exercício de direitos subjetivos; b) princípio interpretativo-integrativo dos contratos; c) fonte de deveres de conduta, atentos à observância da dignidade da pessoa humana, proteção do trabalhador e função social do contrato 37. Importante observar que a discriminação, assim considerada a prática de atos que distinguem, excluem ou constrangem o indivíduo, pode ocorrer de forma direta (adoção de regras gerais calcadas em critérios proibidos) ou indireta (adoção de práticas ou situações aparentemente neutras, mas que distinguem, excluem ou constrangem o indivíduo). Nas relações de trabalho, várias ações do empregador têm conteúdo discriminatório, citando-se, como exemplo, a formulação de perguntas invasivas da vida privada e íntima do candidato, no processo seletivo, desvinculadas da função e do objeto contratual 38. Também a aplicação de testes psicológicos, exame da caligrafia, exame toxicológico, utilização do polígrafo, mapeamento genético, destinados a devastar a intimidade e a vida privada do trabalhador e direcionados a traçar um perfil “ideal”, restringindo ou excluindo do mercado de trabalho aqueles avaliados “negativamente” ou cujas informações obtidas pelos testes ou exames não se adequem ao tipo ideal traçado pelo empregador. Analisa-se, na sequência, algumas condutas, a princípio inseridas no poder de direção do empregador, que podem caracterizar abuso de direito e discriminação nas várias fases do contrato de trabalho (preliminar à formação do vínculo, durante a execução do contrato, no rompimento contratual ou pós-contratual), determinadas pela utilização de inovações biotecnológicas e biomédicas. 5.1 A utilização de mapeamento genético No mundo contemporâneo, inovações biomédicas e biotecnológicas, gradativamente, são introduzidas pelo empregador em processos seletivos a vagas de emprego e no meio ambiente do trabalho. Com isso, surgem novas formas de discriminação, direta ou indireta, além de invasão injusta na intimidade do trabalhador. A utilização da pesquisa genética com a finalidade de identificar riscos de desenvolvimento de determinadas doenças e possibilitar tratamentos precoces levaram a sua utilização nas relações trabalhistas, especialmente na fase pré-contratual. A análise do código genético do indivíduo permite a coleta de inúmeras informações e invade de forma avassaladora a intimidade do trabalhador, o que leva a indagações acerca dos limites de sua utilização e os riscos de retroceder à visão do trabalhador como mercadoria, preocupação externada por Luiz Edson Fachin, com o apoio de José Renato Nalini: Já se assentou, em matéria de eugenia, que: Toda forma de eugenia é potencialmente perigosa. A eugenia gerou a higiene social, o controle médico do casamento, com certificação pré-nupcial, a inseminação artificial mediante fecundação das fêmeas, com ajuda de esperma cientificamente selecionado. Esse poderia ser considerado um eugenismo positivo. Mas a história recente registra um eugenismo negativo. Invoque-se a esterilização, a imigração seletiva, o holocausto e a exterminação suave. [...] Expor o corpo e o sujeito até o limite desvela a vitrine consumista que reduz quase tudo e a todos a objeto de circulação: “Uma sociedade tangida pelo factóide e pelo espetacular se caracteriza por despudorada exibição de suas entranhas, com exorbitante divulgação de intimidades”. 39 Teme-se que a utilização do mapeamento genético, especialmente na fase preliminar da contratação, desencadeie uma perversa forma de discriminação e de restrição ao trabalho, conforme assevera Eduardo Milléo Baracat: Observe-se que o avanço científico e o desenvolvimento de novas tecnologias tendem a tornar o exame genético mais fácil e barato, disseminando-o por todas as empresas, grande e pequenas, o que leva a se antever um futuro sombrio, com a criação de uma nova categoria: os geneticamente excluídos. Explica Jeremy Rifkin que a meritocracia daria lugar à genetocracia, com os indivíduos, grupos étnicos e raças sendo cada vez mais categorizados e estereotipados por genótipo, abrindo caminho para o surgimento de uma classe biológica informal no mundo todo. 40 Sob outro aspecto, a utilização do mapeamento genético durante a execução do contrato de trabalho pode ter relevante conteúdo positivo se utilizado para possibilitar ao empregador empreender medidas protetivas aos trabalhadores com potencialidade de desenvolver determinadas doenças em decorrência do serviço prestado, o que se insere no dever jurídico de proteção. Obviamente, que o acesso às informações genéticas do trabalhador, em quaisquer das fases contratuais, exige a observância do dever jurídico de sigilo. A respeito, José Affonso Dallegrave Neto destaca observação de Jasiel Ivo: [...] o genoma humano requer absoluta confidencialidade, não podendo ser exigido como requisito de identificação para obtenção ou manutenção de trabalho ou emprego, seleção e recrutamento de recursos humanos, muito menos por empresas de medicina privada, seguradoras, etc., como se fosse uma carteira de identidade, de trabalho ou registro da pessoa no cadastro geral de contribuintes. A finalidade do mapeamento genético deverá ser preventiva, de diagnóstico, limitando-se às práticas terapêuticas, assegurando-se sempre ao sujeito seu consentimento livre e esclarecido, priorizando a dignidade humana como valor universal e irrenunciável. 41 Não obstante a ausência de disciplina legal a respeito da utilização de exames genéticos pelo empregador, os direitos fundamentais do trabalhador impõem limites ao poder diretivo do empregador. Mais importante do que criar leis a respeito é, efetivamente, encontrar mecanismos que contribuam para o aperfeiçoamento humano, possibilitando o surgimento de uma consciência ética direcionada ao agir consetâneo com a efetivação dos valores e princípios preconizados no Texto Constitucional, como dignidade, solidariedade, justiça social e boa-fé. 5.2 A adoção de outros métodos no processo seletivo pelo empregador-contratante Empresas têm adotado na seleção de pessoal vários métodos e exames que, além de violar a intimidade do candidato, também podem caracterizar conduta discriminatória, a exemplo do teste psicotécnico, teste de caligrafia, uso do polígrafo, exame toxicológico. Por um lado, é dever do empregador determinar a realização de exames médicos para averiguar o estado de saúde do candidato ou mesmo do empregado durante a execução do contrato de trabalho. Tais exames, entretanto, devem ser precedidos da necessária motivação, com indicação precisa de sua natureza e finalidade 42. A utilização indevida de exames pode provocar invasão da mente e do psiquismo do trabalhador, sendo, portanto, potencialmente lesiva à sua integridade psíquica, à sua intimidade e à sua privacidade, como bem destacado por Maria Helena Diniz: Além da proibição de ato atentatório à integridade psicofísica, é preciso não olvidar a possibilidade de que, em face do direito à incolumidade mental, não se pode atingir, por ação direta ou indireta, a estrutura psíquica de alguém, alterando sua mente, violentando suas convicções políticas, religiosas, sociais, pessoais e filosóficas ou inibindo sua vontade, sob pena de responsabilidade penal e civil. Tais ofensas constituem uma lesão à liberdade moral da pessoa. São condenáveis: a) As práticas tendentes a obter confissão, como os expedientes de tortura, o uso do polígrafo ou lie detector, aparelho que, ligado ao acusado, destina-se a detectar seu subconsciente, suprimindo sua vontade e fazendo com que responda às perguntas dirigidas, o emprego de narcoanálise ou narcodiagnóstico e a utilização de hipnose para descoberta de fatos. Esses métodos constrangem a pessoa a dizer a verdade, atentando contra sua personalidade por haver um “arrombamento” em seu psiquismo, o que constitui constrangimento ilegal; [...] 43 Debate-se acerca da utilização do polígrafo para apuração da veracidade das respostas às perguntas formuladas, em especial na fase de seleção de pessoal, diante dos direitos fundamentais e do duvidoso caráter científico do teste. O polígrafo é um aparelho que mede e registra as atividades neurovegetativas, reproduzindo-as sob a forma gráfica, com o objetivo de aferir a veracidade das afirmações da pessoa que se submete ao teste por esse meio. O aparelho registra variações da pressão arterial, da respiração, das contrações musculares, dos movimentos oculares, etc. Esse teste funda-se no princípio segundo o qual o fato de mentir acarreta alteração psicológica, gerada pelo temor. 44 Quanto aos exames toxicológicos, com o intuito de apurar o uso de substâncias alucinógenas pelo candidato, adverte Claudia Salles Vilela Vianna que sua utilização exige cautela. Imprescindível que exista justificativa médica, comprovação técnica, por meio de laudo especializado, de que a função a ser desempenhada pelo candidato é incompatível com a dependência química diante do risco à saúde do trabalhador e da coletividade. Além disso, para a submissão do candidato ao exame toxicológico, necessária a prévia divulgação de sua utilização no processo seletivo, detalhando, inclusive, as substâncias químicas que inviabilizarão a contratação, sendo indispensável ainda o consentimento expresso do candidato à realização do exame 45. A exigência de exames médicos, utilizados indiretamente para detectar se o candidato ou empregado é portador, por exemplo, do vírus HIV ou de câncer, para fins de admissão e manutenção do emprego, igualmente representa prática discriminatória, ofensiva aos direitos fundamentais do trabalhador. Assevera Ronaldo Lima dos Santos: Nas relações de trabalho, a intolerância com os portadores do vírus HIV e a sua discriminação não foi menor. A ignorância a respeito da doença e o preconceito levaram à demissão de empregados infectados; a não-admissão de trabalhadores contagiados; a exposição a público das suas vidas privadas e violação da sua intimidade; a sua humilhação no local de trabalho, estigmatização e falta de solidariedade. 46 Na fase de seleção de pessoal, informações dessa natureza utilizadas, não raro, como elemento decisório para admissão, têm em vista apenas aspectos econômicos, na medida em que buscam minimizar os riscos de afastamentos do trabalho, queda de produtividade e dificuldades no rompimento contratual. Outra importante questão relacionada aos resultados dos exames médicos, em especial quando detectada gravidez, infecção pelo vírus HIV ou diagnóstico de câncer, refere-se ao necessário sigilo médico, preconizado no art. 76 do Código de Ética Médica (Resolução nº 1931/2009): “Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silencia puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade”. O sigilo, ao tempo em que é um dever do médico, constitui-se em direito do paciente: A pessoa que tem conhecimento do seu estado de saúde tem total direito à sua privacidade. Salvo raras exceções em que se justifica o dever de informação do seu estado, cabe a ela, em princípio, decidir sobre o querer informar, a quem quer informar e a extensão que deve ser dada a essa informação. Nem o médico responsável pela realização dos exames pode divulgar os seus resultados sem a autorização do interessado. O sigilo é um direito da pessoa examinada, é fruto da preservação da intimidade e da vida privada. 47 Pondera Alice Monteiro de Barros que a questão de trabalhador com AIDS no local de trabalho traz à tona a análise, de um lado, do direito do cidadão de trabalhar, não ser discriminado e ter preservado o sigilo acerca do seu estado de saúde, e de outro, o direito da comunidade à saúde. A sugestão da Declaração da OMS e da OIT em torno desse tema é no sentido da abstenção de exigir a investigação de HIV/AIDS na fase de seleção de pessoal, acrescentando, ainda, que o empregado não possui o dever de informar essa situação 48. O art. 168 da CLT impõe a obrigatoriedade de exames admissionais, periódicos e demissionais, destinados a apurar a aptidão física e mental do trabalhador. Análise da norma permite concluir que nesses exames não se inclui a investigação para constatar se o trabalhador é portador do vírus HIV, somente admitida mediante a demonstração do risco de transmissão e contágio em consequência da função executada pelo empregado e com sua expressa autorização 49. 5.3 O monitoramento audiovisual no meio ambiente do trabalho O avanço tecnológico ensejou a utilização de instrumentos audiovisuais no local de trabalho, além de outros mecanismos eletrônicos para controlar o uso do telefone e das correspondências eletrônicas, por exemplo, tudo com o intuito de fiscalizar e controlar a execução das atividades dos empregados, sob a justificativa da necessidade de salvaguardar o patrimônio do empregador. A adoção desses métodos de controle no local de trabalho não encontra óbice legal. Entretanto, a instalação de aparelhos audiovisuais em alguns locais, como em banheiros e refeitórios, não é admitida por ofender a intimidade e privacidade do empregado. A OIT denomina de química da intrusão a “combinação de ameaças à privacidade de dados, de invasão crescente da intimidade física e de maior vigilância pessoal” 50. O monitoramento audiovisual, recomenda Ronaldo Lima dos Santos, deve ser precedido da necessária ciência do empregado. A escuta e as gravações telefônicas, por sua vez, somente se justificam se necessárias à segurança da empresa e do próprio empregado. Por outro lado, monitoramento desta natureza deve guardar conexão com o serviço executado, sob pena de caracterizar invasão injusta da intimidade e da privacidade do empregado 51. Há que se considerar que a adoção do controle da execução das atividades laborais do empregado pelo empregador, por meio de recursos audiovisuais, pode gerar um meio ambiente de trabalho hostil e afetar negativamente a saúde psíquica do trabalhador, desencadeando doenças como depressão e síndrome do pânico. Recentemente, foi veiculada notícia acerca de termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado entre determinada empresa e o Ministério Público do Trabalho, com a finalidade de redução do monitoramento por sistema de videovigilância, limitando-o à segurança pessoal e patrimonial 52. CONSIDERAÇÕES FINAIS As inovações científicas e tecnológicas caracterizam, contemporaneamente, a chamada sociedade da informação, com repercussão, inclusive, na antiga relação de emprego, nascida com a Revolução Industrial. Ao tempo em que se presencia produção científica e tecnológica, qualitativa e quantitativamente expressiva, não se percebe com a mesma intensidade a preocupação com a evolução do homem em sua humanidade propriamente dita. A utilização de novos métodos biotecnológicos e biomédicos para facilitar e aumentar a produção e o crescimento econômico não pode estar dissociada da função social do contrato de trabalho, da promoção e proteção do acesso ao trabalho, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e da abstenção da discriminação. A retomada de reflexões éticas e valorativas atreladas às biotecnologias disponíveis é imprescindível para as relações intersubjetivas e para o operador do Direito, na medida em que constitui um freio à adoção dessas inovações, sob pena de subverter-se a ordem do progresso humano, retrocedendo o trabalhador à condição de objeto, de mercadoria. A dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, é paradigma das condutas humanas e elemento nuclear dos direitos fundamentais, e, sob a ótica privatista, dos direitos de personalidade. O exercício do poder diretivo do empregador é limitado pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da boa-fé, cuja contraface constitui-se no dever de respeitar, proteger e promover os direitos fundamentais do trabalhador. Embora disponíveis vários métodos biotecnológicos e biomédicos, e ausente regramento jurídico que obste sua aplicação ao contrato de trabalho, imprescindível que se utilizem os freios, antes mencionados - da dignidade da pessoa humana e da boa-fé -, para aplicá-los na relação de emprego. A proteção constitucional ao meio ambiente de trabalho, em verdade, busca assegurar o direito do trabalhador a uma vida digna, acepção vinculada ao direito à saúde, à salvaguarda da integridade físico-psíquica do trabalhador e de sua intimidade e privacidade. Não menos importante, a conduta do empregador, em qualquer fase do contrato de trabalho, deve se pautar na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de quaisquer outras formas de discriminação. Constitui-se em dever jurídico do empregador a abstenção de qualquer ato discriminatório, sob pena de caracterizar o abuso de direito. REFERÊNCIAS ANDRADE, Laura Martins Maia de. Meio ambiente do trabalho e ação civil pública trabalhista. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. BARACAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr, 2003. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2009. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência por uma nova hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade civil no direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2010. MOSER, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004. NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. NEWSLETTER Jurídica Síntese. ed. 2844, 27 dez. 2011. Disponível em: www.sintese.com. Acesso em: 6 jan. 2012. SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética, biodireito e o Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. ______. Manual de biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. SANTOS, Ronaldo Lima dos. Sindicatos e ações coletivas: acesso à justiça, jurisdição coletiva e tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. São Paulo: LTr, 2003. SCAVONE JR., Luiz Antonio et al (Coord.). Comentários ao código civil: artigo por artigo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Teoria do direito. São Paulo: Saraiva, 2009. VIANNA, Cláudia Salles Vilela. Manual prático das relações trabalhistas. 10. ed. São Paulo: LTr, 2009. VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética: temas atuais e seus aspectos jurídicos. Brasília: Consulex, 2006.
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