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18/04/2009Papéis avulsos - Arthur Carvalho
18/04/2009Prazer de folhear gazetas e papéis velhos, no silêncio da noite. Prazer de constatar, através de antiga correspondência, que havia entre meus antepassados um sagrado dever de solidariedade humana. Uma preocupação constante com problemas e sofrimentos de cada familiar. Nesta carta de agosto de 1937, meu tio Heitor pede ao compadre distante sua interferência junto às testemunhas que vão depor numa ação do cunhado. Este recorte de jornal, desbotado pelo tempo, transcreve substanciosa crítica da obra de meu avô paterno, Aloysio de Carvalho.Dentro da caixa de papelão, cuidadosamente envolto em plásticos e elásticos, singelo diário de meu avô materno, pernambucano da pesada. Minucioso na descrição e nos mínimos detalhes das viagens, conta que embarcou a 2 de agosto de 1933, de Salvador para Recife, "no Almirante Alexandrino, seguindo daqui para o Maranhão, às 5h43. (incrível o detalhe dos 43 minutos!) do dia 8, pelo Itaimbé". Que teria ido fazer naqueles confins, em remotas épocas? "Fui tratar das lojas dos Lundgrens".
No dia 4 de dezembro de 1941, ele embarcava pro Rio de Janeiro, "no vapor Itapagé, que saiu às 24h". E "a viagem não foi nada boa, não só pela comida, como, ainda mais, pelo péssimo camaroteiro Leão". No fim da página, uma grata recordação: "Conosco foi também a empregada Justina". Ah, Justina! Como esquecer suas frigideiras de aratu, seus aberéns, seus mungunzás, seus aluás? Ela cozinhava tão bem que nos abandonou e quase ficou rica vendendo acarajé na frente do Elevador Lacerda. Digo quase porque Olímpio, o seu homem, mulato elegante e frajola, estoporava tudo nos ternos de tropical, nos imaculados “Taylor 120”, nas roletas das festas do Bonfim. E em matéria de farra, ele não ficava atrás. Dava gosto vê-la de saia branca engomada, anáguas e turbantes, nas festas de Iemanjá, no Rio Vermelho.
Já meninote, eu fugia de casa para assistir Justina dançando à frente dos atabaques, comandando as filhas de santo, penetrando mar adentro, com presentes para Janaína. Terminado o ritual, esperava que todos regressassem para a Igreja de Santana, as barracas de aguardente, as rodas de samba. E disputava com a molecada cortes de fazenda, caixas de sabonete e pó de arroz, pentes, metros de fita, anéis e vidros de perfume, restos de oferendas que as ondas devolviam e se espalhavam pela areia.
Em 1956 eu estava no Gambrinus, com um colega gaúcho, do Banco Francês e Italiano para América do Sul. De repente, vejo, na mesa ao lado, um cara conhecido. Procurei identificá-lo de pronto, não consegui. Quando ele se levantou para colocar uma ficha na eletrola, notei uma tatuagem azul no seu braço. Imediatamente reconheci Leão. Sem me identificar, convidei-o para bater papo. Conversamos até de madrugada, ele me apareceu cordial e agradável. Queixou-se apenas de cíclicas neuroses. E não era pra menos. Ele fora náufrago do Bahia, aos 20 anos.
Lendo agora, em pleno 2009, as queixas de meu avô, vejo que elas têm fundamento, mas perdoo o camaroteiro Leão, pelo seu difícil relacionamento com os passageiros do Pedro II. Afinal, quem esteve na iminência de se afogar na imensidão do oceano, já pagou toda a sua quota de penitência neste mundo de Deus. Morrer no mar pode ser doce nos versos de Caymmi, mas duvido que haja experiência tão amarga neste vale de lágrimas.
Arthur Carvalho é advogado e jornalista, é da União Brasileira de Escritores-UBE/PE.