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10/02/2010O outro - Arthur Carvalho
10/02/2010Publicado no Jornal do Commercio - 10.02.2010
Em priscas eras, peguei o Rosa da Fonseca aqui, no Recife, rumo a Salvador. No navio, com destino a São Paulo, viajava também João da Cunha Rego, 25 anos, careca precoce, exímio pianista amador, místico, católico fervoroso, com ressaibos de macumba, alegre, brincalhão, caçula da nossa turma da Faculdade de Direito da Católica. Na primeira noite, João reuniu um pequeno grupo de passageiros para ler a mão do pessoal. Dizia ter feito curso de quiromancia e ser craque no assunto, lamentando não estar com a bola de cristal, seus búzios e baralho para "prestar serviços completos".
Começou a ler minha mão direita, foi ficando nervoso e empalidecendo. Perguntei o que era, o que estava vendo, mas ele, visivelmente perturbado, só balançava a cabeça: "Nada não... nada não..." Leu minha mão esquerda: "Você tem o eme muito curto..." Indaguei o que isso significava, resmungou alguma coisa e foi atender uma senhora. No dia seguinte, encontrei um colega seu no convés, quis saber por que João tinha se preocupado ao ler minha mão, o rapaz tentou disfarçar, insisti, e ele, meio desconfiado, cabisbaixo: "João acha que você morrerá brevemente. Seu eme da palma da mão direita prevê isso". E se picou me deixando surpreso.
Desembarquei na Bahia, João me deu um longo abraço, beijou minha ex-mulher com a reverência e o pesar de quem beija a viúva de um amigo querido - segundo me pareceu. Peguei um táxi, fui para a Barra, e ele prosseguiu para São Paulo, satisfeito e risonho, como sempre.
De volta ao Recife, cinco dias depois, soube a notícia. Ao cortar o sinal numa avenida do Centro de São Paulo, e ouvir um apito mandando-o parar, João deu uma banana pro guarda de trânsito, que puxou o revólver e atirou em sua nuca, matando-o instantaneamente, na flor da idade.
Lembrei desse episódio agora, com o assassinato do sociólogo pernambucano Hélder José Barreto, 41 anos, por cinco PMs, no Sertão do Piauí. O motivo seria o mesmo do caso de João: desobedecer ordem de parar, dada por "blitz". Não adianta processar os criminosos por homicídio doloso porque não cola. A defesa arguirá tese fácil e costumeira: ato praticado no estrito cumprimento do dever legal com absolvição certa.
Dirá um preconceituoso que o sangue que corre nas veias dos soldados do Sertão do Piauí, que mataram Hélder Barreto, em pleno século 21, é o mesmo dos "macacos" dos tempos de Lampião, que corre nas artérias do guarda de São Paulo que fuzilou João, e talvez tenham razão, pois não se atira em pessoa desarmada, e pelas costas, sem condições de se defender. E qual é o tipo sanguíneo dos policiais ingleses que trucidaram aquele brasileiro, em Londres, "confundido" com terrorista?
Toda corporação e todas as classes sociais e profissionais têm seus bons e maus elementos. O perigo é quando os maus elementos andam armados sem o devido preparo psicológico, e, em vez de proteger o cidadão, matam-no traiçoeira, covarde e impunemente.
Deram muitos tiros em Hélder Barreto. A propósito, Clarice Lispector: "Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro."