Médico do Aratimbó - Arthur Carvalho

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29/04/2009

Médico do Aratimbó - Arthur Carvalho

29/04/2009
Médico do Aratimbó - Arthur Carvalho
Publicado no Jornal do Commercio

Era, antes de mais nada, um homem triste que vivia solitário na sua casa de subúrbio em Salvador. Certa ocasião, tomado de enorme angústia, partiu para o exterior no primeiro cargueiro que apareceu. Regressou, mais amargurado ainda, e seguiu sobrevivendo depressivo, sempre atento ao rumo que as coisas tomavam em seu país. Às vezes, pensava apenas em morrer. Deitava-se na cama, esperava a morte, a morte não vinha, e os amigos compadeciam-se dele. Durante anos equilibrou-se numa tênue linha, dominado pelo medo, por calafrios e pesadelos.

Entre seus autores preferidos estavam Gogol e Melville. Gostava da opinião de D. H. Laurence sobre o comandante Acab, de Moby Dick: "Ele representa o instinto vital em luta contra o intelecto que o mata". Admirava Wilde, seu poeta de cabeceira, mas Virgínia Woolf tocava-lhe o coração. Em nossas conversas, dizia da tentativa da escritora de aclarar o mistério individual da alma de seus personagens através da descrição de algumas experiências psicológicas. Quando falava sobre a preocupação da notável contista em estudar com profundidade a existência e o espírito, transportava-se para um mundo mágico, do qual parecia não querer mais sair.

Ao entardecer nos encontrávamos, no Farol da Barra, no exato momento em que a claridade do sol, que se esconde por trás da Ilha de Itaparica, se refletia no casario e nos prédios comerciais da Cidade Alta. Ele chegava pobremente trajado, camisa aberta, sandálias franciscanas. E falava com os baleiros, os pescadores, as pretas do acarajé. Às vezes levava copo e garrafa de mistura muito apreciada na Bahia: John Bull e vermute. E fumava um maço de Astória, em cinco horas de um quase monólogo. Entre uma dose e uma tragada relembrava seu tempo de médico do Aratimbó e contava dever às longas horas de ócio de bordo o seu conhecimento de parte da obra de Stendhal, Hardy, Balzac e Conrad.

Além da medicina, sua grande paixão era a literatura. Feito Flaubert, considerava mais emocionante encontrar uma bela frase que amar uma linda mulher. Se observava fato interessante, fixava-o logo num caderno de notas para aproveitá-lo num livro que nunca publicou. E, se por acaso eu citava Dostoievski, transformava-se e retomava a palavra. Com o romancista russo se identificava na amargura e na infelicidade.

Quando deu baixa na Marinha Mercante, seu mundo interior ameaçou desabar, resolveu morar no interior de Minas. Aí poderia escrever em paz, pensava. Mas viver sozinho, longe da Bahia e de seu querido navio, o Aratimbó, era para ele impossível.

Voltou à terra natal, e, cansado, envelhecido, magoado com tudo que o cercava, morreu sozinho, ao amanhecer do dia 20 de junho de 1955, num quarto de espelunca, depois de uma cerveja gelada.
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