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07/07/2009Incivilidade digital - Fernando Araújo
07/07/2009Publicado no Diario de Pernambuco - 07.07.2009
fernandojparaujo@uol.com.br
Toda a convivência social deveria pressupor princípios norteadores, postulados, os quais se assentassem na concepção que se deve ter do indivíduo e da sociedade e das relações entre eles. Não foi por outra razão que Kant sugeriu que procedêssemos de tal modo que a regra do nosso comportamento pudesse ser erigida em regra universal. E, ainda, que víssemos as outras pessoas sempre como um fim, e nunca um meio. Isso equivale dizer que nós devemos nos submeter às mesmas regras que os outros se sujeitam em igualdade de circunstâncias; e que devemos atribuir aos outros a mesma qualidade que a nós mesmos, isto é, a de sujeitos. Estes imperativos categóricos propostos pelo filósofo traduzem seu modelo de vida democrática. Modo criativo de superar os costumes feudais, os privilégios dos senhores, a submissão humana e a intolerância. São regras básicas para uma vida humana e civilizada. São regras e ao mesmo tempo são trilhas para chegarmos à compreensão fundamental de que todo homem deve ser visto, ao mesmo tempo, como ser moral - em si mesmo considerado - e indivíduo ("animal político"). Na primeira situação, ele é sujeito de direitos, que precisam ser reconhecidos e protegidos pelo estado e pela sociedade como um todo. Na segunda, mero cumpridor das regras e determinações sociais, a fim de possibilitar a realização dos outros. Mas o egoísmo, a arrogância e outras deformações do caráter humano dificultam esse ideal de vida civilizada.
Em seu livro "A Era dos Direitos" (2004, pág. 186), Bobbio alerta para esses percalços da vida democrática. Na sua visão, o problema da convivência das minorias, como por exemplo, os homossexuais, os deficientes etc é agravado em razão do preconceito e da consequente discriminação que dominam muitas cabeças. A prova, entre nós, dessa assertiva foi mostrada pela televisão brasileira (agora vivendo a chamada era digital, onde os sinais trafegam em bits e bytes, em alta resolução, com invasão das telas em plasma e LCD), dias atrás, durante a Parada Gay em SP. Um jovem foi espancado por vários outros, com chutes, socos e pontapés. Morreu dois dias depois no hospital. Foram cenas degradantes. Diante das câmaras das TVs do mundo inteiro, a razão apagou. Como que houve uma renúncia dos padrões civilizatórios e um retorno ao modo selvagem de viver, de que fala Hobbes. No mesmo dia a televisão também mostrou, em cores bem vivas, cenas de pugilato e agressões de motoristas, uns aos outros, no trânsito de diversas cidades. Só em São Paulo as estatísticas apontam 400 lutas por dia, às vezes com mortes ou graves ferimentos. Psiquiatra ouvido informou que, se um veículo da frente deixar de se mover dez metros, já é motivo de desavença, xingamento e confusão.
Aristóteles dizia que "Quando o homem pensar no seu passado, deve baixar a cabeça e olhar para o chão; e quando pensar no seu futuro, deve olhar para o céu". De fato, os primórdios do homem, "de lobo do seu semelhante", para poder comer, vestir e viver, em nada nos orgulha. Mas a soberba leva muitos a preferirem ainda hoje à incivilidade, a violência, a tensão. O orgulho motiva o rompimento com a perspectiva de paz, de uma vida respeitosa e profícua sob as mesmas regras e princípios. Até quando?