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22/04/2009Eles vão atirar - Arthur Carvalho
22/04/2009Quando os professores da Equipe Paulo Freire, do SEC, souberam do golpe, ficaram desarvorados. Na manhã do dia 2 de abril de 1964, alguns de nós nos reunimos na Rua do Hospício, mais precisamente defronte do prédio antigo da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Pernambuco.Organizávamos uma passeata pacífica de protesto contra o golpe, quando recebemos o aviso de certo líder estudantil, hoje senador, de que, por prudência, deveríamos evitar a manifestação.
O escritor Marcius Cortês, hoje radicado em São Paulo, queria ir para Porto Alegre, aderir ao governador Leonel Brizola, para resistir, mas com que dinheiro? perguntou Jomard Muniz de Britto. Vamos de trem, sugeriu um otário. De trem? E quando chegaremos lá?
O grupo dispersou-se, no começo, mas ao passar pelo Parque 13 de Maio, recebeu substancial reforço dos alunos da Faculdade de Direito, que desciam as escadarias, aos borbotões. Caminhamos ao largo do Santa Izabel e do Palácio das Princesas, pela frente do Teatro Barreto Júnior, onde eu assistia as comédias com Lúcio Mauro, e as vedetes gorduchinhas e um tanto decadentes, pegamos a Dantas Barreto e, ao passarmos perto do Edifício Santo Albino, encontrei Manoel Torres, em pé, quebrando num terno branco impecável.
O Curso Torres era o mais famoso e importante curso pré-vestibular de direito do Recife. Torres tinha sido seminarista no interior da Paraíba e chegou ao Recife pobre, mas sabendo um latim e um português bestas. Eu havia me preparado para o vestibular de direito de 55, da Federal, no seu curso, e em 1964 era seu professor de redação e de literatura francesa. Tínhamos grande admiração, estima e consideração pelo mestre, que, antes de mais nada, era amigo fiel.
Torres me chama: "Não acompanhe esse pessoal, que isso vai dar bode. As tropas do Exército estão ali, na Praça do Diário, prontas para intervir. Essa turma é solteira e jovem. Você é noivo e vai casar agora." "Então vamos segui-los de perto", sugeri. Topou, com ressalva: "De perto, não, de longe".
E assim foi. Mais adiante, ele segurou meu braço esquerdo: "Pare, que eles vão atirar!" Eu não servi ao Exército e não conhecia as posições dos soldados, nem o momento de atacarem – mas ele sabia. Logo depois, os estampidos de fuzil, dois corpos no chão, pânico geral.
Na tarde do dia seguinte, Padre Paulo Menezes fez vibrante discurso ao pé da cova onde um dos meninos vitimados foi enterrado, no Cemitério de Santo Amaro.
Nunca mais esqueci aqueles dois dias. Passados 45 anos, as palavras de espanto do saudoso amigo Manoel Torres ainda me acompanham no café, no almoço, no jantar e na hora de dormir: "Eles vão atirar!" E atiraram mesmo, tingindo de sangue a democracia...
P.S. – Quando a prefeitura vai sanear os esgotos a céu aberto que inundam o centro comercial do Recife? Quando vai acabar a insuportável poluição sonora da Rua da Imperatriz?
Arthur Carvalho é advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.