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13/07/2009Crimes de paixão - Dayse de Vasconcelos Mayer
13/07/2009Publicado no Jornal do Commercio - 12.07.2009
dayse@hotlink.com.br
Das bandas ainda chuvosas do Maranhão recebo a palavra de inconformismo de uma advogada amiga. Revelava-se descontente com os resultados de um júri simulado em homenagem ao criminalista Waldir Troncoso Peres, falecido em abril último. O réu, imaginário, era acusado do assassinato de uma mulher por razões de ciúme. O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos atuou na defesa. Na acusação funcionaram o criminalista Alberto Zacharias Toron e o promotor Roberto Tardelli. Prevaleceu, por 166 votos favoráveis contra 41, a tese de crime de paixão defendida por Bastos. Na opinião da jurista repassadora da notícia, Bastos tentara ressuscitar a tese de legítima defesa da honra defendida por Evandro Lins e Silva no caso Doca Street. Para quem tem boa memória, o caso ocupou os jornais na década de 80 e teve como protagonista a socialite mineira Ângela Diniz. A opinião pública – sempre flutuante ou cíclica – condenou antecipadamente a vítima, concorrendo para o reforço dos epítetos "Pantera de Minas", "Prostituta da Babilônia" e "Vênus Lasciva". Ângela representava, na realidade, o arquétipo da amante: fêmea livre e audaciosa, mulher voluptuosa, ardente, corruptora dos homens e destruidora de lares.
Um argumento impressionava na tese de Lins e Silva: os crimes de paixão são ilícitos de conjuntura. Nenhuma relação possuem com a violência em outras áreas. Têm a ver com a educação familiar e com os valores e costumes que a sociedade dissemina. Não podem receber o mesmo lineamento de outros ilícitos não decorrentes de atos de desespero ou depressão amorosa. O sistema carcerário, no modelo vigente, seria uma alternativa atentatória ao princípio da dignidade. A pena privativa de liberdade, teoricamente, deveria possibilitar ao sentenciado a reflexão sobre o ato criminoso, permitir a ressocialização e preparar o detento para o reingresso na família e na sociedade. Mas a intenção do Estado – dependente da adoção de técnicas de disciplinamento e de reconstrução moral – não se concretiza. Pelo menos no Brasil. Segregado da família, dos amigos e de outras relações socialmente significativas, o cárcere apenas estimula a promiscuidade sexual, o vício e até mesmo a morte do apenado. Assim, antes de funcionar como fator de regeneração, o sistema prisional funciona como fator criminógeno, de agudização dos processos depressivos e ocorrência de diferentes tipos de psicoses. É verdade que são vícios gerais do sistema carcerário, mas impressionam quando aplicados a estes crimes.
Os homens lideram as estatísticas dos crimes de paixão. Foram educados para a contenção das emoções. Mesmo as mais singelas. Quando os sentimentos não podem aflorar por inteiro vão se acumulando numa caldeira. No instante em que as válvulas se rompem pelo excesso de pressão do meio, as emoções fluem desordenadas sob o ferrete da irracionalidade. Quem já leu Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, poderia compreender melhor essa lógica.
Na seara feminina, também as mulheres matam. E com requintes de perversidade. Mas isso ocorre, geralmente, na imaginação. Não se trata dos casos em que a mulher, vítima passiva de recorrente crueldade masculina, explode subitamente um dia e mata. Aqui é diferente: elas conseguem redirecionar a paixão para si próprias numa espécie de sadomasoquismo ou lento suicídio. Exatamente como se a morte tivesse o poder de ressuscitar a paixão no outro. Grande parte acaba por descobrir que a maior vingança é revelar ao homem amado que ainda possui a capacidade de ser feliz.
Por tudo isso, não se duvida que o veredicto do júri é preocupante. É-o na dimensão simbólica. Representa o desejo de recuo a um passado onde o amor, mesmo exaltado, doentio e dilacerado revelava a existência de uma humanidade que se foi esvaecendo ou apagando ao longo dos séculos. Mas, para isso, matar? Pôr em causa o dogma do valor absoluto da vida que, por mais abalado, ainda persiste no universo coletivo brasileiro? Não será um preço alto demais a pagar pela compreensão emotiva por quem mata por amor?
dayse@hotlink.com.br
Das bandas ainda chuvosas do Maranhão recebo a palavra de inconformismo de uma advogada amiga. Revelava-se descontente com os resultados de um júri simulado em homenagem ao criminalista Waldir Troncoso Peres, falecido em abril último. O réu, imaginário, era acusado do assassinato de uma mulher por razões de ciúme. O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos atuou na defesa. Na acusação funcionaram o criminalista Alberto Zacharias Toron e o promotor Roberto Tardelli. Prevaleceu, por 166 votos favoráveis contra 41, a tese de crime de paixão defendida por Bastos. Na opinião da jurista repassadora da notícia, Bastos tentara ressuscitar a tese de legítima defesa da honra defendida por Evandro Lins e Silva no caso Doca Street. Para quem tem boa memória, o caso ocupou os jornais na década de 80 e teve como protagonista a socialite mineira Ângela Diniz. A opinião pública – sempre flutuante ou cíclica – condenou antecipadamente a vítima, concorrendo para o reforço dos epítetos "Pantera de Minas", "Prostituta da Babilônia" e "Vênus Lasciva". Ângela representava, na realidade, o arquétipo da amante: fêmea livre e audaciosa, mulher voluptuosa, ardente, corruptora dos homens e destruidora de lares.
Um argumento impressionava na tese de Lins e Silva: os crimes de paixão são ilícitos de conjuntura. Nenhuma relação possuem com a violência em outras áreas. Têm a ver com a educação familiar e com os valores e costumes que a sociedade dissemina. Não podem receber o mesmo lineamento de outros ilícitos não decorrentes de atos de desespero ou depressão amorosa. O sistema carcerário, no modelo vigente, seria uma alternativa atentatória ao princípio da dignidade. A pena privativa de liberdade, teoricamente, deveria possibilitar ao sentenciado a reflexão sobre o ato criminoso, permitir a ressocialização e preparar o detento para o reingresso na família e na sociedade. Mas a intenção do Estado – dependente da adoção de técnicas de disciplinamento e de reconstrução moral – não se concretiza. Pelo menos no Brasil. Segregado da família, dos amigos e de outras relações socialmente significativas, o cárcere apenas estimula a promiscuidade sexual, o vício e até mesmo a morte do apenado. Assim, antes de funcionar como fator de regeneração, o sistema prisional funciona como fator criminógeno, de agudização dos processos depressivos e ocorrência de diferentes tipos de psicoses. É verdade que são vícios gerais do sistema carcerário, mas impressionam quando aplicados a estes crimes.
Os homens lideram as estatísticas dos crimes de paixão. Foram educados para a contenção das emoções. Mesmo as mais singelas. Quando os sentimentos não podem aflorar por inteiro vão se acumulando numa caldeira. No instante em que as válvulas se rompem pelo excesso de pressão do meio, as emoções fluem desordenadas sob o ferrete da irracionalidade. Quem já leu Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, poderia compreender melhor essa lógica.
Na seara feminina, também as mulheres matam. E com requintes de perversidade. Mas isso ocorre, geralmente, na imaginação. Não se trata dos casos em que a mulher, vítima passiva de recorrente crueldade masculina, explode subitamente um dia e mata. Aqui é diferente: elas conseguem redirecionar a paixão para si próprias numa espécie de sadomasoquismo ou lento suicídio. Exatamente como se a morte tivesse o poder de ressuscitar a paixão no outro. Grande parte acaba por descobrir que a maior vingança é revelar ao homem amado que ainda possui a capacidade de ser feliz.
Por tudo isso, não se duvida que o veredicto do júri é preocupante. É-o na dimensão simbólica. Representa o desejo de recuo a um passado onde o amor, mesmo exaltado, doentio e dilacerado revelava a existência de uma humanidade que se foi esvaecendo ou apagando ao longo dos séculos. Mas, para isso, matar? Pôr em causa o dogma do valor absoluto da vida que, por mais abalado, ainda persiste no universo coletivo brasileiro? Não será um preço alto demais a pagar pela compreensão emotiva por quem mata por amor?