Convocação ao futuro - Dayse de Vasconcelos Mayer

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13/02/2011

Convocação ao futuro - Dayse de Vasconcelos Mayer

13/02/2011
Convocação ao futuro - Dayse de Vasconcelos Mayer

Publicado no Jornal do Commercio - 13.02.2011

dayse@hotlink.com.br

Eduardo Neiva, piauiense com várias obras publicadas no Brasil e no exterior e professor titular da Universidade do Alabama, escolheu como frase-chave para as suas considerações numa palestra realizada no Brasil o registro contido no interior de um banheiro: "Marx morreu, Freud morreu! Estou-me sentindo mal". Parodiando Inah Lins em seu livro de contos, não é apenas a solidão que é espaçosa. Assim acontece com o nosso passado e com o futuro. Somos demasiado nostálgicos com o dia de ontem e demasiado avaros com o amanhã. Sequer cogitamos do sentimento de perda que isso acarreta. O filósofo da casa de banho pretendia afirmar que também estava a morrer. Diferente de Marx, Freud e outros pensadores, ele partiria provavelmente sem deixar vestígios da sua passagem pelo mundo. Eis o sentimento de que participam todas as pessoas com pouca notoriedade no mundo. Certamente não devemos duvidar de que estamos a morrer um pouco a cada minuto. Cada perda representa um fragmento daquilo que deixamos, somos, pensamos ou criamos. Todavia, cada um a seu modo deixa o seu ferrete. Pode ser exageradamente tênue ou leve ou extremamente robusto. É por isso que nós devemos aprofundar a nossa percepção a respeito daqueles seres que dedicam a vida à arte de pensar e fazer ciência. Eles também aspiram a um espaço de exclusividade. Encapotados na ciência, resguardam ou mascaram a parte mais silenciosa do ser: a vaidade e a autoafirmação. Todavia, ser ou não importante é irrelevante. Afinal, cada marca deixada pelo homem é única e inextinguível.

Em A paixão segundo GH, Clarice Lispector escreve:"porque viver não é relatável, viver não é vivível". A afirmação é difícil de decodificar. Clarice não se entregava. Mas não era original nesse aspecto. Nós também não nos entregamos. O ser humano brinca com as palavras e com as ideias como se fossem crianças em fase de balbucio. Nenhum pensamento flui solto, leve e liberto. E a vida seria isso mesmo: vencer a barreira da clausura consentida. Enquanto exteriorizamos a nossa preocupação com o passado estamos revelando, de forma não ostensiva, a nossa necessidade de salvação do que é permanente. Enquanto lamentamos a felicidade dos dias que se foram, tentamos deslembrar o nosso contributo para as gerações seguintes. Esta é a nossa epifania, que se associa ao medo ou mesmo pavor de ficarmos circunscritos ao ontem/hoje. Por isso mesmo cada um de nós monta a sua carapaça como se fosse uma tartaruga. Tal singularidade concorre para erradicar ou extinguir o sentimento de coragem de pôr a cabeça de fora. Afinal, cada dia nos sentimos mais presos, endurecidos e incapazes de enfrentar as pessoas e a própria realidade numa sociedade de dimensão aberta. Quiçá à moda popperiana - objeto de reflexão de Neiva: sociedade libertária democrática e onde não haveria grande espaço para psicologismos e para a psicanálise à moda freudiana, mas que poderíamos tornar sempre pelo diálogo um pouco menos errada. Tanto o hoje como o amanhã refletiriam uma só verdade: o caminho para a racionalidade e para a crítica sem utopias mas também sem abdicações. Mesmo com os conhecidos percalços, perigos, enganos, ausência de ética, violência extrema e insegurança de diferentes ordens, o futuro estaria sempre em aberto, espreitando cada um de nós independentemente de idade, classe e raça. Eis aí o que chamamos de convocação ao futuro. E tal chamado não se desvencilha da saudade. Mas não a saudade como sentimento de perda ou a que assalta as pessoas mais idosas. Afinal, passado, presente e futuro formam um compósito. Aquilo que construímos, mesmo sem alardes e sem divulgação, forma uma rede de ideias, sentimentos, crenças, virtudes e aquisições complexas. Afinal, o todo não existe sem as partes. Tal consciência de partilha concorre para a formação da ideia de mais valia pessoal e para o incremento considerável da nossa autoestima. E tudo se resume mesmo a uma só palavra: paixão. É com paixão que as sociedades se agigantam e se afirmam perante outras. É com paixão que a inteligência se alarga. Igualmente é com paixão que a nossa alma se revela um enigma, como uma rosa em estádio de revelação e de descoberta permanente. 

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