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19/01/2011Conversa com Batatinha - Arthur Carvalho
19/01/2011Publicado no Jornal do Commercio - 19.01.2011
Fui ao enterro de um amigo no Parque das Flores recentemente. Aproveitei para visitar o túmulo de meus pais e de meu irmão Carlos Aloysio, e não gostei do que vi. Ele está abandonado e feio. Contrato o coveiro Batatinha para fazer um canteiro com grama boa e plantar flores no local. Batatinha vai regar a grama e as flores e catar o mato. Como tinha muita saúva, acho melhor substituir as flores naturais por artificiais.
No dia 2 de janeiro, voltei àquela - como direi? - necrópole, para conferir se Batatinha havia concluído o serviço. Travou-se então o seguinte diálogo entre nós:
– Aqui não falta freguês, não é Batatinha?
– É, doutor. Ontem mesmo chegaram oito.
– Por que tantos?
– Todo fim de ano é assim, a turma "entornam" mais na véspera e embarcam mais cedo.
Me lembrei de Roberto Motta. Ele disse que a construção clássica seria essa mesma: "A turma entornam". Indo a concordância pro plural. E Manuel Bandeira: "A língua errada do povo. A língua certa do povo".
– Pior é no Carnaval, doutor - prossegue Batatinha - a clientela aumenta com a extravagância dos foliões. Além de cana, confusão. Mas aqui é cemitério de grã-fino. Pobre é que enterra muita gente no Carnaval, porque rico toma uísque ou vinho, bebidas caras, não quer escândalo e aguenta melhor a gaia, e o lascado vai é na cachaça e se vinga do chifre na peixeirada e na foice. O senhor já viu briga de barão em delegacia de polícia?
– É verdade. Mas cuide direitinho desse jazigo, Batatinha, porque, breve, talvez eu venha morar aqui, fazendo companhia aos meus pais e meu irmão. Eu queria ir pro mausoléu da AIP, mas parece que não tem vaga.
– Onde é isso, doutor?
– No Santo Amaro. Se eu vier praqui, não quero choro nem vela, fique sabendo. Vou querer um conjunto de samba, animando o velório, com um time bom no violão e no cavaquinho. Não confundir com pagode nem axé.
A essas alturas, Batatinha olha um tanto assustado pra mim:
– Me desculpe, doutor, mas nunca ouvi uma conversa dessa. Acho uma boa ideia, porque o pessoal só vem acompanhar defunto soluçando e gritando. Uns gritos histéricos. Tenho visto tumulto, também. O corpo ainda não esfriou e a família já está cobiçando a herança. Isso faz mal ao falecido. São fluidos ruins. Uma energia pesada. Eles deviam respeitar os mortos.
– Você já dormiu alguma vez sozinho, aqui, Batatinha?
– Não, doutor, porque o movimento não para. Já varei muita madrugada em claro, mas dormir, não. Se tiver de dormir, durmo sem medo, porque os que moram aqui não bolem com ninguém. Aqui só fica a matéria, o espírito está vagando por aí...
– Aí, onde?
– Não sei. Ainda não voltou ninguém pra dizer como é o lado de lá. Sei que quem praticou o mal na terra vai ter que pagar em outro canto. Cada religião diz uma coisa.
Regressarei ao Parque das Flores dentro de trinta dias para "inspecionar" o local onde estão meus pais e meu irmão. Não custa nada fazer o reconhecimento do terreno antes da partida final, como fazem os jogadores de futebol, levando, de presente, pra Batatinha, um tubo de água que passarinho não bebe. Afinal, ninguém aguenta um trabalho daquele no seco.