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16/07/2009Comorientes - João Humberto Martorelli
16/07/2009Publicado no Jornal do Commercio - 16.07.2009O nome é feio: comorientes. Diz-se comorientes daqueles que morrem no mesmo instante. A lei estabelece que, falecendo dois ou mais indivíduos na mesma ocasião, não se podendo averiguar qual morte precedeu às demais, presumem-se simultaneamente mortos, o que tem importantes efeitos na sucessão.
Um comoriente não participa da sucessão do outro, porque a vocação hereditária se dá em relação aos herdeiros existentes no momento da abertura da sucessão que, ainda segundo a lei, ocorre no preciso instante da morte. Ressalvam-se, é claro, os casos de representação, por meio da qual os herdeiros do falecido habilitam-se à sucessão de quem o falecido estaria habilitado (por exemplo, os filhos representam o pai pré-morto na herança do avô).
Situações incomuns podem acontecer em casos de sinistros, como os desastres aéreos. Suponha-se sinistro na hipótese de um casal de viajantes de uma família em que o pai já vivera um primeiro casamento e a mulher também, cada um tendo um filho do primeiro casamento, dois herdeiros, portanto, mais um filho comum, nenhum dos quais viajava com eles. Observando o regime normal da separação parcial de bens, ele e ela possuíam bens anteriores ao casamento que não se comunicavam, chamados bens particulares. Em tal situação, diz a lei, o marido participa, nesses bens, da sucessão da mulher em concorrência com os demais herdeiros, e a mulher, igualmente, da sucessão do marido. Porém, falecendo ambos no desastre, e sendo impossível detectar com precisão o instante da morte de cada um, são comorientes, um não participando da sucessão do outro. Por conseguinte, o filho do anterior casamento do marido herdaria, juntamente com o filho comum, por inteiro, os seus bens particulares, o filho do anterior casamento da mulher herdaria, também juntamente com o filho comum e por inteiro, os bens particulares dela. Quanto aos bens comuns, adquiridos na constância do casamento, seriam divididos entre todos os herdeiros: a metade do marido, entre o filho comum e o filho do casamento anterior, e a metade da mulher, também, entre o filho comum e o filho do casamento anterior dela.
Imaginemos, contudo, que, por arte do destino, o marido viajasse sozinho. No dia seguinte, ao saber da notícia, a mulher, desgostosa, morreu em decorrência de infarto. Nesse caso, a mulher dividiria com o filho do anterior casamento do marido os seus bens particulares, pois participa da sucessão dele (aberta um dia antes), o filho dela herdando a parte desses bens que já teria passado do padrasto para a mãe. Mas o filho dele, que falecera antes, não participaria dos bens particulares da madrasta. O filho comum, obviamente, teria parte nos dois montes. Em suma, uma confusão de filhos de um, de outro, um patrimônio misturado, com evidente potencial de conflito. Haverá quem não se incomode, mas, se você é daqueles que se preocupam com a situação, é melhor arrumar tudo enquanto estiver vivo (ou viva), planejando e decidindo o destino e a divisão de seus bens. Do contrário, é torcer para que você e seu cônjuge venham a ser comorientes. Nos casos de sinistros como o referido, em relação aos corpos não encontrados, não é mais necessário esperar anos para abrir inventário. O Código Civil atual criou a morte presumida, a ser objeto de processo iniciado logo depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo o juiz fixar a data provável do falecimento. Quanto ao nosso casal acima, sendo comorientes, a morte presumida seria decretada com a mesma data.
O direito não regula a morte, mas os efeitos dela. A data e o exato instante em que a indesejada das gentes nos colhe são mistérios que nenhuma regra legal vai desvendar.Resta-nos o fascínio do próprio mistério. Aquele casal acima, os dois viajantes, que pensaram, no átimo da iminência da morte, quando o avião começou o mergulho fatal? Terão pensado um no outro, trocado o último carinho? Não sabemos. Tudo o que sabemos é que, embora possa ter morrido um antes do outro por um segundo infinitesimal, a lei os proclama comorientes. Juntos na morte (o encontro da norma jurídica com o verso). Terão vivido versos no amor? Também não sabemos, eles não sabiam. Os amantes, diz Rilke, "apenas ocultam eles um ao outro seu destino".