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12/08/2009As incoerências da paixão - Arthur Carvalho
12/08/2009Publicado no Jornal do Commercio - 12.08.2009
Após peregrinar sem rumo pelos becos e cabarés do Recife Antigo, subiu as escadas de um cargueiro grego de bandeira panamenha, ao amanhecer, deitou e cochilou no convés. Foi acordado por um tripulante, quando o navio saía da barra, no Lameirão, prestes a partir para o alto-mar. Desembarcou no Marco Zero, na lancha do prático Luiz Augusto Correia de Araújo, que se inteirou de seu drama, ficaram amigos, e depois, colegas de turma na Faculdade de Direito da Católica.
Na véspera as coisas lhe pareceram nebulosas e confusas. Estaria ele movido por forte afeição? Ora achava que sim, ora que não, resolveu caminhar pela beira do cais, em direção à Cruz do Patrão. Ali encontrou ancorados os paquetes Almirante Jaceguay, o D. Pedro I e o Itaimbé. Josemir, mulato claro, voz mansa, bigodinho ralo, imediato do Itaimbé, jantava com ele e seus pais, nos Aflitos, quando seu navio atracava aqui. E contava suas aventuras e viagens, a tempestade que pegou no Golfo de Biscaia, no Princesa Isabel, outra, nas Antilhas, a bordo do Rosa da Fonseca. O irmão Manuel era náufrago do Piave, torpedeado na Segunda Guerra, no litoral brasileiro.
Parou no Silver"s Star, o coração apertado e o peito dilacerado. Ainda titubeou se entrava ou não, resolveu ir em frente. E agora podia ver o rosto dela, pálido e juvenil, seus olhos negros e graúdos, perdidos na penumbra, e isso lhe angustiava, pensou que fosse chorar. Por que destruir para sempre toda aquela beleza e mocidade? Quais os verdadeiros desígnios da existência? O que sabia ele dos mistérios da vida, milagres do amor e incoerências da paixão?
O cais do porto nunca lhe parecera tão soturno como naquela noite escura e fria de agosto, com fortes rajadas de ventos soprados do norte para o sul. Agora, ela andava à sua frente, solitária e abatida, sobre os paralelepípedos e trilhos dos trens de ferro. Os pombos que catavam os grãos derramados pelos caminhões e guindastes dos graneleiros não lhe interessavam. Incomodava-se apenas com o pio monocórdico dos pardais, em voos rasantes sobre sua cabeça.
O Texa"s bar ficara pra trás, com a porta que nunca fechava e o fumaceiro de costume. O Chantecler e o Moulin Rouge também. Ainda pensou dar um pulo no Flutuante, ouvir o crooner Roberto Bozan cantando o bolero La Barca, metido num smoking tão negro quanto ele, unhas esmaltadas, sapatos lustrados, cabeleira fixada e perfumada com brilhantina Glostora, tomar uma Brahma Porter no Gambrinus, um Cuba-libre no OK, um Castelo na Cova da onça - mas desistiu. Aquele olhar profundo e tristonho o perseguia, tanta mocidade desperdiçada, jogada fora.
Deu por si, estava no segundo andar de uma pensão da Bom Jesus. E tornou a se preocupar com o futuro e destino daquela menina, sua saúde precária. Quando o sanfoneiro tocou Assum preto, e, depois, Andaluzia, em sua homenagem, fraquejou. Conferiu um número de telefone na carteira e ligou. Tarde demais: quem atendeu disse que ela partira sem destino.
Os anos passaram, como costumam passar sempre. E depois de muito tempo, e de repente, ele voltou a vê-la, um tanto desfigurada e distraída, perambulando à deriva, pela Avenida Marquês de Olinda, até cruzar lentamente a ponte Maurício de Nassau e desaparecer na "elegante melancolia do crepúsculo", em direção à Rua 1ª de Março, refletindo sua figura atormentada e franzina no espelho manso do Capibaribe.