As coisas simples da vida - Dayse de Vasconcelos Mayer

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02/05/2010

As coisas simples da vida - Dayse de Vasconcelos Mayer

02/05/2010
As coisas simples da vida - Dayse de Vasconcelos Mayer

Publicado no Jornal do Commercio - 02.05.2010

dayse@hotlink.com.br

Acordei sem vontade de falar sobre as enfermidades ou mazelas crônicas do Brasil. Abri as janelas e me deliciei com o ar que ainda podia fruir na minha varanda. As árvores, com as suas folhagens " baloiçando", saudavam o início da manhã e sugeriam um convite para uma homenagem às coisas simples e mágicas da vida. Cogitei da retirada de uma hortência do canteiro do edifício. Cada uma delas compõe um cantinho prenhe de afetividades. Apenas a disposição de dela me apossar já produziu o efeito indispensável em mim. Passei imediatamente a refletir sobre os odores. Logo atentei para outras sensações relacionadas com o sabor. Pensei na alegoria implícita na A festa de Babette, filme baseado no conto de Karen Blixen, pseudônimo de Isak Dinensen. Igualmente em Brigittte Ankaert e em suas mãos carregadas de feitiço. Elas diriam que a confecção de uma receita requer experiência estética, paciência e excesso de magia na mistura dos temperos. Um almoço ou jantar bem preparado deve espelhar a vida, despertar desejos frugais e gestos e imagens que já se perderam no tempo. O início de uma refeição com esses traços é a um só tempo uma armadilha para os convivas e uma apoteose onde sucumbimos diante da sedução, prazer, desejos inconscientes e ruptura do cotidiano. Emoções aprisionadas emergem da textura dos paladares. E todas as experiências estão centradas no tempo. Tempo para a sequência dos pratos, para a degustação e identificação dos sabores, para a apropriação do aroma... É o tempo que tempera o conhecimento com a ferramenta dos sentidos e a presença do espírito. Um banquete verdadeiro assusta pelo inusitado e pelo sentimento de liberdade e esperança. O alimento remete, com frequência, além dos elogios dos daqueles que participam do jantar ou almoço, a outros ingredientes: o poder de reconciliação com o outro e com a vida - mesmo de forma efêmera ou precária. Tudo isso potenciado pelo cântico e poética do anfitrião.

Há duas semanas escrevi a uma amiga portuguesa. Disse-lhe que iniciara o preparo do doce de sua eleição. Respondeu-me de imediato: "Adorei a descrição... Normalmente fazias o doce de laranja antes de saíres de Lisboa. Havia em tudo isto um ritual. E eu comia lentamente os pedaços, manhã após manhã, vendo como o frasco se ia esvaziando. E resistia sempre em comer mais um pedaço quando começava a ver-se o fundo translúcido. A vida só vale a pena, Amiga, quando temos fatos desta índole para recordar. Cada dia mais me convenço de que somos absolutamente privilegiadas. Porque tivemos e temos tudo aquilo que nenhum dinheiro pode comprar e que é exatamente aquilo que em nós pode operar uma espécie de efeito redentor".

A verdade inquestionável é que a felicidade é formada por coisas realmente simples. E elas existem em abundância. Depende unicamente do uso dos nossos sentidos e da nossa imaginação: nariz, ouvidos, olhos, pele e boca (aromas, sons, imagens, texturas e sabores). Os sentidos representam antenas captadoras de informações. O espírito sublima-as, mas é fundamental a vocação para a criatividade. Já experimentou um banho numa banheira com pequenas gotas da colônia favorita? Ou mesmo deixar o corpo cada vez mais fluido, laxo ou liberto dentro de uma piscina ou mar? Tudo com os olhos fechados e sentindo a água e o sol acariciarem a pele e escutando as vozes alegres de crianças ou o sopro mágico do vento? Contudo, se não há disponibilidade para nenhuma destas experiências, passe por um orfanato e leve uma criança para brincar num parque. Talvez ainda não tenha disposição para esse ato. Então telefone para um idoso e fale com ele. Talvez ganhe o súbito desejo de formular um convite para um lanche ou passeio rápido de carro. Posso assegurar que é algo gratificante e demasiado prazeroso.
 

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