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08/12/2009Amizade e poder - Ronnie Preuss Duarte
08/12/2009Publicado no Diario de Pernambuco - 08.12.2009
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Há alguns dias, ao cabo da leitura do livro do ilustre professor lisboeta Paulo Otero sobre os últimos meses de vida de Oliveira Salazar, choquei-me com o melancólico ocaso do prestigiado estadista lusitano. Impressiona a narrativa da derrocada daquela figura que representou a personificação do poder em Portugal por quase quatro décadas, revelando nas entrelinhas a mais profunda solidão terminal daquele que teve no exercício do poder político a sua verdadeira razão de existir.
A obra, aliás, deveria ser leitura obrigatória àqueles que, apegados a cargos, funções e mandatos, deixam-se colher pela ambição escravizante que amesquinha o caráter, subjuga os princípios e anula os sentimentos. O livro lança luzes sobre o alto preço cobrado àqueles que descuidam das verdadeiras amizades, antes cultuando os relacionamentos úteis, passageiros, vagantes, deambulando a reboque dos interesses do momento.
Salazar gozou, por considerável lapso de tempo, de inexcedível prestígio em Portugal. Foi o instituidor do estado novo e o pai da Constituição portuguesa de 1933, que lhe permitia consolidar o poder acumulado desde a estreia na vida pública. O ex-seminarista chegou a definir os rumos de guerras (nas províncias ultramarinas): dizia-se que era o dono do país. Tudo tinha e tudo podia. Contudo, morreu sem nada: poder, amigos, parentes, prestígio ou riqueza, tudo esvaiu-se com a derrocada na vida pública.
A débâcle na política foi vexatória, secundando um acidente doméstico. Caiu da cadeira, caiu na vida. Octagenário e compulsoriamente recluso numa morada emprestada, em São Bento, tinha um quadro demencial irremediavelmente instalado; era alvo de zombarias cochichadas pelos empregados. Incontinência fecal. Incontinência urinária. Incontinência emocional: depressão.
Retiraram-lhe o mandato sem que soubesse. Selecionavam-lhe as leituras, sonegavam-lhe a realidade. Participava, involuntariamente, de uma grande encenação. Enquanto se pensava licenciado temporariamente da presidência do Conselho de Ministros, não passava de um velhote cuja morte era ansiada por muitos. Submetido à vontade de uma voluntariosa governanta, abatido e solitário, disparava recorrentes queixumes: altavam-lhe as pessoas que julgava próximas. Foram-se os aduladores. Ressentia-se Salazar do poder que lhe fora abruptamente subtraído. Pôde, enfim, conhecer, na respectiva essência, o círculo as relações que mantinha, eis que despido daqueles atrativos de outrora, os impessoais.
Olvidou Salazar a transitoriedade das adulações, o relativismo dos favores inefáveis, a exiguidade dos gozos incontidos. Esqueceu-se que as facilidades não eram eternas; que as mesuras têm o cargo em mira, finando sempre com os mandatos. Morreu só. Quis ter amigos verdadeiros. Feneceu antes que lhe fosse concedida a graça. O desabrigo emocional foi-lhe o último experimento. Ao que parece, Salazar não tinha amigos, tinha conveniências; Salazar não teve parentes, mas apenas consanguíneos; Salazar não conheceu uma vida: trocou-a pelo poder.
Foi vítima da "lei da miséria do poder", retratada por Otero, segundo a qual "se se tem poder ou a simples suscetibilidade de o vir a ter, há sempre um séquito de seguidores; se não se tem poder, nem a perspectiva de o vir a adquirir, só restam os genuínos amigos." Sem amizades, nada restou.